Objetos da Gravidade
Veja. Que assim eu via com os seus
olhos. E cobria a minha cabeça por outras razões que não o semi-desvelo da minha
estranheza, chamada pelos homens de mistério.
A nossa história que começou ou
continuou assim: ressarcido de uma dívida. Orquestrado por competição e birra,
o engenhoso; o gênio das patentes. O poder da ascensão. Assim se iniciou a
construção da torre mais alta e dos nomes mais altos. Aquele: outro olho dos
meus olhos. O passado do homem.
A construção de cidades, que
cresciam aos olhos como crescem os bambus. Para o passado, o momento não pára a
apreciar um pássaro. Muito menos os sonhos dos meus amigos e amigas. Porque o
passado do homem está acima, dentre estrelas; e preconceitos. A estrela estéril
do passado: o Sol, que nasce e deita para os nossos filhos.
Ressarcido de uma dívida e orquestrado
de poder e propriedade, o engenhoso; o gênio das patentes alcançou as estrelas.
Assim se iniciou a construção dos foguetes mais acessíveis.
A abstração do valor do ouro e dos
recursos, não mais necessários para criar riqueza. As colônias eram os planetas,
cada vez mais próximos: e entre eles a destruição nas distâncias percorridas
pelo homem. Amplificadas num grau de polinização titânica, mas estéril.
O limite se achou na lua, o hemiciclo do
ser. Os olhos do futuro sobre o presente. O que nos faz pequenos diante de
tudo. A gestação da gravidade. O tempo devagar das coisas. Uma borboleta.
A falácia do avanço tecnológico é o
torpor na interpretação do humano. Pois contanto que a civilização se
desenvolva sobre o conceito de verdade na propriedade, o feminino sempre será
um lugar público. E sendo público, vive sob um contrato.
Se existe uma ficção científica, é a
ficção do passado do homem. Aquele: outro olho dos meus olhos. O guerreiro, o
samurai, o soldado, o bárbaro, o general – tão cheio de luz quanto o sol do
passado. Tão ignorante de si como o pó do presente: acumulado de morte.
Acumulador de amantes e adjetivos – a luz engole cada pedaço de terra para
limitar seu ego.
A estação espacial crescia. A partir daí
estava aberta a porta para além do nosso círculo lunar. Mas a ciência não
estava preparada para entender a linguagem para além da ciência da linguagem. A
tradução que vive do nome de um bárbaro em uma estátua de metal. Uma conceptualização
internalizada de causa e efeito. O método Fibonacci das expressões de suas
bochechas e o poder de sua honra em repartir espaços.
Quem era aquele que dizia que a história
é escrita pelos vencedores? Lembro-me de Walter Benjamin, o filósofo judeu que
fugiu do Holocausto na Alemanha do século XX. Mais um homem do passado. Perdido
em seu nome e destino.
Com nossas unhas sujas de terra, fomos
as geradoras de gravidade. Com as cabeças nas estrelas. Vacas leiteiras e
parideiras. Donas de casas sem destinos. Emprestadas, as casas e nós – todos.
Sim, no início a vida era um suplício, uma desgraça. A perda da multitude de
caminhos.
O amor ou a falta dele eu ofereço ao meu
pai. Ou aos pais de todas as mães e pais. O suor de conquistar corpos e
estrelas por (ou com) sua própria dignidade, inconsciente de seus rastos. Meu
pai – nossos pais – era o único crédito do amanhã.
A Terra, nossa casa sem cabeça. Oceanos
de dívidas para com um futuro estranho, mas igual, sempre vazio e igual. O
destino do descobrimento se fazia explorador. Uma sonda, uma britadeira, um
guindaste, uma ferramenta, uma e uma porta para o desconhecido que nunca se
revelava como quando se olha nos olhos. Deus existe? Essa era a pergunta das
engrenagens científicas. A pergunta frequente do anjo da luz: a epistemologia.
Tempos duros. Durante o tumulto político
daqueles ideais de igualdade e o medo: entre gêneros, entre raças. Perdeu-se
também a credulidade. Porque tudo que se ganha um dia, também se perde. Porque
no passado tudo se há ganhado e se há perdido. Mas liberdade não se ganha.
Liberdade é e não é. Assim como o medo do escuro.
Enquanto possuímos a proteção da luz,
não há necessidade de enfrentarmos os nossos medos. E os deuses e fantasmas nos
deixam momentaneamente a sós, sem uma pergunta sequer.
O passado jura sempre ser melhor, apesar
de estar inequivocamente atrasado. Acreditamos assim, como se prometêssemos a
nós mesmos amor, quando na verdade queremos nos saciar de sexo. Não nos
conhecemos no passado. Criamos a ilusão de identidade com imagens seletas e
memórias tortas. Toda a dor esquecida, até que coincidentemente passamos de
novo por ela. Ao encontro de vivências repetidas, nos esgotamos, infelizes. E
erguemos, criamos... Tudo passa. Passado.
De minha janela eu vejo os rios que um
dia foram negros e putrefatos. O óleo enchia as narinas de comodidade material.
De resto, a ciência sempre conservava a saúde dos homens com a ajuda da
tecnologia e telemarketing. Os oásis de segurança e beleza se enchiam de
orgulho e riquezas. E a diferença entre pobres e ricos encontrava as suas
perguntas e respostas na substancia e talentos da meritocracia das classes
castas. Usava-se comumente o entendimento e a linguagem das generalizações.
Tudo se generalizava para formar uma opinião. Daí que todas as ações provinham
de uma reação.
Tivemos um passado frio e reacionário
que se estendia em anos desde a primeira fissão nuclear, passando por longas
décadas de guerra fria, até a reação das emoções humanas a qualquer encontro
com uma oposição.
Encontramo-nos, no entanto, em um
passado mais feliz que estendia as tradições de um povo e os braços de nossas
crianças ao encontro das nossas inconsequências.
Outro olho dos meus olhos. A felicidade
cresce nas mulheres. E também a infelicidade. Rodeadas pela lua e para sempre
enraizadas à Terra. Mães. Maré das águas, vida azul. Ancoradas. Pesadas como
baleias chorosas.
Setenta anos de impermanência passaram.
E mais setenta anos de impermanência passarão. Tudo o que era e é ainda
desconhecido: o nosso peso. O peso das mulheres. O peso da gravidade e da
gravidez. Somos leves por elas estarem presas. Presas ao peso da lua.
Desconhecido o peso das mulheres.
Desconhecido o peso dos objetos. O passado dos meus olhos vive de servidão.
Tudo o que se usa e é meu e seu.
Não somente a dívida no que diz respeito
ao capital, como também a nossa dívida para com os objetos crescia de geração
para geração. Mas o nosso medo do escuro era maior que a nossa ética ou
dignidade.
Eu sempre achei estranho a nossa fome
por conhecer sempre mais (sobre a luz) enquanto que fugimos do escuro. Queremos
sempre conhecer mais e julgar o outro, enquanto fugimos de nós mesmos.
Setenta anos atrás eu observava os
homens ainda com certa inveja. Como a vida era mais fácil para quem sabia
defender-se a si e suas ações. A humildade não é própria dos homens. Por isso
sempre houve tantos sacerdotes e monges celibatários.
Crescíamos todos para cima, sem
questionar preconceitos. Ignorávamos a oposição pelo bem da identidade e do
Capital. A humildade do homem se dava apenas ao conhecimento e luz de Deus.
Pois somente Deus podia julgá-los. O Deus máquina.
Não, não era tão simples assim. Todos os
que servem são humildes. Ou todos os humildes servem? A quietude dos que
servem. Até porque servir não é necessariamente algo mau. A servidão, no
entanto, sim. É outra coisa.
Como é difícil diferenciar o “servir” da
“servidão” num passado que generaliza a palavra para dar a conhecer. O silencio
é maior que uma resposta e por isso se aquietavam os objetos. Para quê
encontrar o objeto no silêncio do objeto? Inconcebível a um homem.
Marido, eu e você éramos um homem.
Presos em uma palavra e lutando pela mesma palavra: homem.
Setenta anos atrás a nossa liberdade de
expressão era tão grande quanto o nosso medo. O peito ardia, cheio de ilusões e
verdades infundadas em uma leitura do futuro e presente.
E o que acontecia em um diálogo? Eu me
esquecia. A utilidade de ser algo brilhava aos meus olhos. E você me abandonou,
contra a sua vontade, mas me abandonou. Vivemos em guerra. Uma guerra contra o
desconhecido. Uma guerra contra nós mesmos. Felizes e esquecidos um do outro.
A felicidade se encontra em qualquer
coisa. Ou talvez não em qualquer coisa, mas naquelas que nos servem, livres da
servidão. E assim se marca o tempo. Sem números. Sem escravos.
Eu queria ensiná-lo a amar, mas só
encontro seus braços setenta anos atrás. Agora não deixa de ser sonho esquecido.
Não o desejo fora do tempo. Não quero ser jovem. Não. Reviver a juventude cansa
os músculos das pernas e dos braços. Não quero tampouco ser imortal. Se
cansarão todos de mim. E eu de mim. As ideias não mais me servirão de boa fé.
Minha alma amargura.
Já tive duas vidas em uma. A primeira
vivi em inocência e a segunda cinicamente. Também não quero a inocência. Já não
faz parte de mim. Quero me ver desfolhar.
Alinho-me com o tempo. Alinho-me ao
tempo. Saúdo à minha boca velha e quem queira ouvi-la. Calço os meus pés todas
as manhãs, quando levanto, mas bem poderia que não. Alinho-me ao sol e à lua.
Minha lua.
O seu chapéu se apresentou a mim no dia em
que você partiu. Nunca o havia usado antes. Sua carreira se desvendava por
debaixo do seu novo quepe. Seria este o único ou um dentre tantos outros? Um
herói entre as estrelas. Mais um dentre tantos maridos fora de casa.
Suas asas de cera se desmanchariam um
dia. Por certo. Fora de equilíbrio as coisas não duram.
Depois que meus dois filhos cresceram,
um ancinho enferrujado me escolheu como pupilo, ainda na casa de minha mãe. Uma
borboleta pousou na minha mão para selar o compromisso.
Trabalhei a terra por quase quarenta
anos. E também trabalhei o céu. O céu com meus olhos e os meus vizinhos e
companheiras com as minhas mãos. Viramos uma família. Comemos e trocamos.
Abrigamos em vez de brigar. Todos perdemos tudo igualmente.
No passado o que uniu os homens sobre a
terra foi a apropriação da utilidade da mulher. A verdade inquestionável; seja
de que religião fosse. E assim, ela se aquietou junto aos objetos. E serviu.
Hoje o que nos une a todos é o abrigo
que a mulher oferece. O elo que nos une. Seja por amor ou por apropriação.
Olho dos meus olhos, a mulher era um
bem. E, portanto, podia ser roubado. Havia quem vivia para vigiá-las.
Violá-las, as sem pai ou irmão. A hierarquia do homem mais velho vingava o
medo. Sem uma cabeça, a família caía; e as mulheres leiloadas para quem as
quisesse comprar.
Todos eram pais, sem exceção, e
compravam. Usavam-nas e se dispensavam delas quando já não tinham utilidade.
Homens condecorados, que ficavam para trás.
‘Os que ficavam para trás’—era assim que
se dizia dos que aqui na Terra viviam, seja por escolha ou não. Viver aqui era
mal visto, mas afinal todos queriam voltar vivos para casa. Envelhecer com suas
famílias em paz. Quanta paz se podia encontrar?
A paz na vida de um homem. Era uma idéia
bonita. Uma paz, um mergulho na superfície. Uma superfície atordoada por pesadelos.
Uma robô mulher foi criada, com seios
salientes e pele como cera derretida, sensível ao tato. Eu vi que o robô
perdia-se por dentro. A mulher aquietou-se em sua utilidade. E os sonhos dos
homens ultrapassaram as nuvens e o fundo dos olhos.
Depois de algumas décadas, a imagem de Jesus
começou a ser esquecida no ocidente. Já que todas as respostas para os nossos
problemas estavam lá fora, dentre as estrelas. Para que servia Jesus?
A igreja enfraqueceu e do vaticano
sobraram ruínas. Inabitadas. Acredito que tenha se manifestado como ‘o museu da
palavra’ em suas ruínas. Estranho pensar que uma cultura esquecida do filho de
Deus morreria por ele. E a mãe nasceria da água de seus olhos. Chorona,
chorona. Se Pai e filho morreriam um dia dentre os passados setenta anos,
morreriam.
Assim, o sol se pôs nas ruínas do
vaticano. Aquilo que se iniciou com a apropriação de um cordeiro.
O destino das mulheres foi selado há 100
anos, com a criação de uma nova estação espacial. Ao perceber que todas as
mulheres que se mudavam à estação se tornavam inférteis, o mundo voltou-se
reacionário. A nossa Terra virou um viveiro de mães. Sem uma expectativa certa
de filhos, perdemos nosso futuro. E também a razão.
Tanto faz se começássemos a exploração
espacial em Marte ou Europa. Nossas mulheres perdiam sua ovulação sem a
gravidez da lua para compartir seus meses de maré, noite e dia.
Isso, junto com os preconceitos de
vários milênios não superados, nos moveu e vimos passivamente os governos
virarem autoritários da noite para o dia.
As mulheres, mães, como bens pertenciam
agora todas aos Estados. Apropriação privada, a família, só era possível aos
servidores do Estado. Os que sobreviviam. As mulheres naturalmente inférteis
viviam do sexo. Dividiam suas quotas com as servidoras mecânicas nas estações
espaciais.
O feminino existia em função do Estado;
do estilo de vida do masculino. Do poder e exploração como meios de existir; de
questionar. Mas a vida era inquestionável. Como inquestionável era a posição da
mãe. Tão natural como o nosso passado: o passado do homem. O homem ‘inquestionado’,
inquestionável; o olho dos meus olhos.
Nascíamos todos para servir a uma
tecnologia indubitada. O medo subsistia, sempre. A única liberdade que as
mulheres ainda mantinham, até o fim das igrejas, era o poder de escolher o
marido. Dentro de uma janela de 3 anos a partir dos nossos 13 anos de idade. Na
lei, a idade adulta.
Os homens viviam em dívida com o Estado
para poder apropriar-se de bens. Uma dívida paga com a vida. Aqueles que não aceitavam
participar deste programa de vida, não tinham uma vida fácil ou longa. Não lhes
era permitido nem terras, nem tirar vantagem das evoluções tecnológicas e científicas.
Mereciam somente a morte e a falta de dignidade.
Dignidade e civilização: as duas mesmas
palavras que vendem o medo e os Estados autoritários. O merecimento da
dignidade pertence a uma nação, a um gênero, a uma raça. O “merecer” que merece
respeito. Uma liberdade dada pelos Estados de controle, pelos que administravam
a dignidade e o poder econômico das nações. Sempre as mesmas caras, armadas de
verdades.
Voltávamos ao feudalismo. Um feudalismo
colonialista espacial.
Com tanto espaço e informação, o passado
do homem se perdia. Mas as mulheres encontravam o seu presente em cativeiro e
medo. Nos objetos quietos e na família.
Por que corremos dos demônios dos
objetos por tanto tempo? Quando a resposta estava lá. O tempo todo. O presente
é e sempre será dos objetos. Eles nos dão sentido, o ritual do tempo. Eles nos
enviam em nosso caminho.
Eu virei um ancinho. Um ancinho que
olhava para o céu, a vigiar pelos meus filhos. “Que venha visitar-me meu
marido”. Um compromisso de dignidade que pouco me importava. O futuro, sim. Eu
sou abridora de caminhos. O futuro nascia comigo e as visitas de meu marido.
Sempre para semear. Continuar meu trabalho na terra.
No fim de carreira, meu pai alcançara
alto cargo militar, com sua inteligência mecânica e tática. Recebeu do Estado
Azul uma grande casa e um grande terreno para se aposentar. E construiu uma casa
de madeira para mim e meus filhos ao final do terreno. Cuidei de todos e da
terra. Até que meus pais morreram, a minha mãe de morte induzida, e o Estado
pegou a casa e as terras de volta.
Fui assim transferida à casa de meu
marido, como todas o eram depois da morte de seus pais. Deveríamos sempre
agradecer pela dignidade e força de nossos pais e maridos.
Meu presente continuou cuidando da terra,
da minha filha e netos. Em mim, o futuro pousava. Era a esperança de todas nós,
juntando terra. Amigos era uma coisa que ainda existia. Fiz muitos, aqui e ali.
Sempre ajudando nos momentos tenebrosos e também nos calmos. Competir com os
que têm menos ou os que têm mais é inútil. E competir com os nossos iguais é
desejar solidão.
Sofrer pela ilusão de dignidade é a mais
tola das autoflagelações humanas. Afinal, cabe a nós mesmo ensinar o amor
incondicional e a bondade ao próximo. Se eu tive a sorte de ter pai, e depois
marido, podia ter o azar de perder tudo igualmente. Nunca se deve comparar a
sorte. Para muitos, uma vez que a roda desce, nunca mais sobe. Uma infelicidade
permanente, até morrer.
Para outros a morte irrompe, sem
infelicidades. E faz histórias. E uma morte em grande escala, histórica, assomou
a nossa existência, como um tsunami solar, queimando manômetros, controles e
fontes de energia. O espaço sideral e as colônias artificiais viraram um
cemitério de astronautas, de meu marido e filhos, olhando-se para si mesmos,
para a eternidade. Sem testemunhas. Derretidas as suas asas, pois uma vez que
se chega ao mais alto, a queda torna-se abismal. Pois os homens se queimaram.
Queimados pelo mesmo sol que seguiam
como um Deus; eles voaram mais alto do que podiam. Seu Deus e não-Deus os matou
a todos, com o fogo do seu julgamento e sem preconceitos. E ‘os que ficaram
para trás’ e nós, as vacas de parto, fomos os únicos que sobrevivemos. Sem uma
só tecnologia que nos funcionasse. Mas eu apenas continuei ancinho e sem filhos
homens. Mas em minha quietude de objeto, o sol não afetou. Os medos já viviam
testemunhas de mim. Eu virei forte.
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